quarta-feira, novembro 09, 2005

extra

França

"Dezenas de jovens envolveram-se esta noite em novos confrontos com a polícia em Toulouse, no Sudoeste de França.(...)Há quatro noites que Toulouse é palco, à semelhança de dezenas de outras cidades francesas de distúrbios levados a cabo por jovens moradores em bairros desfavorecidos.(...)Os confrontos em Toulouse marcam o arranque da 13ª noite de violência em França."
in Público

Portugal
(mais precisamente em Lisboa, na loja Extra da Avenida Álvares Cabral)


Decidido a pagar os iogurtes de manga/ actimel de morango/ manteiga/ fiambre e a adquirir mais alguns pregos para o meu caixão de fumador, aproximo-me da caixa deixando, no entanto, uma distância de segurança entre mim e o cliente que estava a ser atendido. A mesma distância que normalmente deixo na fila do multibanco, ou do carro da frente. Aguardava tranquilamente a minha vez quando entra na loja um rapaz (layout: alto, preto, sobretudo de marca, boné). Sem parar, dirigiu-se ao empregado da loja com um elogio irónico: "Então bacano, és sempre o mais rápido aqui, o que é que se passa". E continuou a falar com ele. Queria saber se a "Mafalda" estava a trabalhar esta noite.

Ingénuo como sou, pensei que se conheciam. Vinte segundos depois, e uma vez que a todas as perguntas feitas o empregado respondeu com silêncio, percebi que não era bem essa a realidade. Percebi também que o meu lugar na fila estava ameaçado. Tal como os condutores que abusam do meu zelo na estrada para mudar de via, também este rapaz achou por bem ocupar o espaço que deixei vazio. Ele seria o próximo a ser atendido. Ele e os seus três amigos, acabados de entrar (layout: cópia do anterior).

A tal "Mafalda" acabou por aparecer - nem tinha outro remédio, tantas vezes eles gritaram por ela. Abriu a caixa do lado, à qual eles se dirigiram. Eu coloquei os meus iogurtes no balcão e comecei a ser atendido. Enquanto procurava o dinheiro nos bolsos, uma caixa de chiclets de canela caiu ao chão.

"Anda lá com isso, Mafalda" / chiclets / "vá lá que o táxi tá à espera" / kinder bueno / "o que é que tens na mão? Nada, Mafalda" / trident de morango / "junta aí um português vermelho mas rápido, caralho" / kit-kat / "traz aí uma birra" / bolicao / "epá, põe lá isso no sítio...Não tirei nada, Mafalda" / "despacha-te, puta" / "tou a pagar táxi, caralho". Não sei o que eles estavam a pagar, apenas vi algumas das coisas que colocaram nos bolsos. Por esta altura, o empregado já não me atendia, nem estava por perto. O momento do seu regresso à caixa coincidiu com a saída dos rapazes, que aproveitaram para pegar em dois ou três sacos de "manhãzitos" da panrico. O empregado voltou às traseiras da loja.

Olho para a Mafalda enquanto ela diz que está toda a tremer. Que um deles estava armado. "Chama a polícia", grita ela para o Carlos, o "meu" empregado. Um dos rapazes regressa e coloca os "manhãzitos" de volta na prateleira - "Tá aqui, não roubámos nada" / "O meu colega já chamou a polícia" / "Mas tá aqui, caralho, diz lá a esse filho da puta que não é preciso, caralho, CHAMA-O LÁ, CARALHO, QUE SE ESSE FILHA DA PUTA CHAMA A BÓFIA EU VOLTO AQUI E PARTO-LHE A CARA TODA, CARALHO, OUVISTE, CARALHO...". E saiu.

Durante o rescaldo fico a saber: que a loja só tem segurança ao fim-de-semana, "apesar de ser a que mais factura enquanto a do Bairro Alto tem direito a segurança toda a semana".; que isto acontece constantemente; que "tivemos sorte porque eram apenas quatro (...) costumam vir aos dez e aí vai cada um para seu lado e roubam o que querem, nós só vemos os buracos nas prateleiras" ; que a mãe da Mafalda não quer que ela trabalhe à noite mas que ela gosta, apesar de tudo ; que o Carlos acha que eles "devem pensar que estão em Angola, os filhos da puta"; que o Carlos só "queria era apanhar um destes cabrões sozinhos"; que "a polícia nunca chega quando é preciso, é a polícia que temos"; que o Carlos responsabiliza a Mafalda por esta não ter visto o que eles roubaram; que a Mafalda acredita que um dia destes o Carlos leva uma facada porque insiste em ir para fora da loja a ver se os vê.

A polícia entrou e saiu em dois minutos. A Mafalda está demasiado nervosa para atender alguém. O Carlos está nas traseiras. Eu já faço parte da mobília. Apetece-me fumar mas não o faço - sei que é proibido fumar dentro da loja.

(...)

Entro no carro. Deixo os Sigur Rós entrarem.Tranco as portas. Acendo um cigarro. Não gosto da vida como ela é.

ps: sim Jo, sete minutos depois de te deixar em casa.

11 comentários:

pepita disse...

bem...estou chocada...
conclusão: não te aconteceu nada e provavelmente nunca mais vais ao local em questão (ou pelo menos por volta dessa hora).

...sorte a da jo que já estava em casa...

sr_raposo disse...

não deixes de lá ir...
se nos vergamos a isso deixamos pura e simplesmente de sair à noite.

mas que é uma merda é....

sara disse...

Na loja de conveniência do bairro alto (R. D. Pedro V) nunca lá vi o segurança durante a semana, mas a verdade é que também nunca me senti insegura e entro lá quase todos os dias. (Os tipos que pedem dinheiro à porta é que são chatos como o caraças, mas não são ameaçadores.)

Tem cuidado... É um mundo cão.

sara disse...

Esqueci-me de dizer que entro lá quase todos os dias, de dia ou de noite (muitas vezes em cima do fecho, às 2 da manhã, para comprar cigarros). Aquilo é sempre muito movimentado, não tem problema. Até ao dia...

Joana disse...

oh sim, porque eu n fui roubada no bairro alto num bar que até é de gente conhecida. Há 25 anos a viver em em Lx e foi a ÚNICA vez que tal me aconteceu. Bora não panicar??? Caramba, acho que esta reacção irracional está a deixar vir ao de cima alguns sentimentos xenófobos... Sim, sim, tranquem-se em casa, ponham os carros na garagem e fechem os imigrantes em Chelas... Weeeeeeeeeee

Mas depois gostaram muito do anúncio da efémera, não foi??? Carpe Diem e tal, mas depois disturbios em FRANÇA, fritam o people todo...

Gosto desta joventude destemida...

Anónimo disse...

credo.
mas... táxi?

carlos paulo disse...

Como é óbvio, não vou deixar de ir ao extra da Álvares Cabral. Não é a primeira vez que assisto a situações como esta e tenho a certeza que não será a última. E este Extra em particular faz parte da minha vida à demasiado tempo para o afastar assim, de ânimo leve. As coisas acontecem e eu nem sequer tenho um particular desejo de as alterar... apenas não me peçam para gostar delas. Em relação ao táxi, Dinis, é uma realidade... eles chegaram e "partiram" de táxi... mais uma estória para contar na praça.

Em relação ao que dizes, Joana, acho que leste um texto bem diferente daquele que escrevi. No entanto, deixa-me responder-te: Eu fui assaltado mais de uma centena de vezes durante a minha vida - não, não é exagero. A zona onde moro é dada a isso. Não deixei de ir à escola, não me tranquei em casa, não quis fechar os imigrantes em Chelas ou enviá-los para um buraco negro no limite do universo. Mas sei que a minha personalidade foi afectada por isso, assim como sei que há coisas que não faço por causa disso - convida-me para andar de metro à noite e saberás a minha resposta. Há tempos conheci um rapaz igualzinho a mim: tinha sido assaltado tantas vezes como eu e reagia às situações de uma forma muito semelhante à minha - também não se fechou em casa, mas foi afectado por essa realidade permanente. Claro que como bons seres humanos que somos, habituamo-nos às coisas e aprendemos a lidar com elas da melhor forma possível.

Não sou um jovem destemido nem nunca dei mostras de o ser... Outros haverá que o são...tanto me faz. Escrevi sobre o que aconteceu no Extra apenas e só porque pela primeira vez na minha vida, os rapazes nem repararam na minha pessoa. Parecia que tinha vestido um manto de invisibilidade. Sempre tive a sorte de chamar a atenção dos interessados em realizar um assalto - não sei se pela carapinha loura que transporto comigo desde pequeno... Desta vez, não foi assim.

França preocupa-me mas não é de hoje, nem de há quinze dias - o que acontece por lá agora tem raízes que só os mais distraídos não conhecem. As mesmas raízes que podemos encontrar por cá. E uma raiz, se bem alimentada pode, de facto, vir a dar frutos. Não há aqui pânico - há a constatação de um facto. Preocupante. Não sei qual a ligação deste tema com o anúncio da efémera - anúncio pelo qual manifesto pessoalmente o mesmo desagrado que tu, pelo que li no teu blog. Já no passado, o filme "Clube dos poetas mortos", também ele portador da mensagem em questão, me fez alguma confusão. Assim como uma música dos Rage Against The Machine, que os adolescentes costumavam cantar bem alto nas discotecas "Fuck you, I won't do what you tell me" - a maior parte deles cantava isto a pensar na mãe, e que não, não vou arrumar o quarto. Pouco importa. Cada um agarra-se ao que dá jeito, consoante a disposição com que acordou.

Agora aquilo que eu queria mesmo chamar a atenção, no texto, era para a Mafalda e o Carlos. Sim, eu paguei as minhas comprinhas e vim-me embora. Eles por lá ficaram.

Joana disse...

Pardonnez moi, pela crítica trés amarga.

Mas a moi-même chateia-me que o enfoque da preocupação sejam as "Mafaldas e os Carlos" desta vida e não os outros tipos (layout: alto, preto, sobretudo de marca, boné).

Mais celá deve ser, claramente, defeito de fabrico meu, nascida e criada em meios rousseaunianos.

Mas, e para provar que até tenho boa vontade, diz que a Parfois das Amoreiras tem vagas para empregadas. Isto resolve o problema da Mafalda. O do Carlos poderá ter solução idêntica, hei-de procurar nas Amoreiras, Picoas Plazza, ou assim.

Le problem ici est que os outros tipos (layout: alto, preto, sobretudo de marca, boné) vão continuar na mesma. Os problemas deles não têm que ver com "o trabalho", "o namorado/a", "a escola", "os pais", "dinheiro" ou o que quer que seja que chateia a humanidade em geral (essa mesma que já veio em minha defesa no meu blog quando me chamaram, com alguma justiça, "a maior cabrona da blogosfera" e arredores - acrescento eu). Os problemas deles são bem mais complexos e têm a ver com um sentimento que todos fingimos ter, mas que ninguém na verdade já experimentou: o de não pertencer a nada, o de estarmos sózinhos e construirmos a nossa identidade meramente por oposição a um mundo que nos é, desde o primeiro choro, hóstil.

E se calhar, caro Carlos Paulo, você acabou por apanhar por tabela por tudo aquilo que tenho lido em diferentes blogs esta semana. Por isso, mais uma vez me penitencio, aqui, num blog onde sou apenas imigrante, Mea Culpa, Mea Culpa, Mea Maxima Culpa et pardonnez-moi autrefois...

carlos paulo disse...

Joana

Presumo que apesar do tempo que passou desde a última vez que conversámos frente-a-frente, não te tenhas esquecido de quem eu sou e como penso. Não penses que a minha preocupação é apenas pelas "Mafaldas e Carlos". Mas a verdade é que, neste caso, eles estavam a fazer o seu trabalho tranquilamente e foram "incomodados" pelos rapazes. Não acho isso muito justo, analisando apenas e só o acontecimento referido. Que foi o que fiz.

Já agora, e especialmente para ti, duas coisas:

- na ressaca do "assalto", entrou o Carlos Coelho da Brandia para comprar Marlboro Lights. Nem deu por nada.
- O post que escrevi imediatamente a seguir a este, é dedicado à sua pessoa.

carlos paulo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
carlos paulo disse...

errata:

no sétimo comentário desta caixa, da minha autoria, onde se lê "à muito tempo", deve ler-se "há muito tempo".

Sem mais de momento, obrigado. E obrigado m, pela chamada de atenção.